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A Corte Interamericana de Direitos Humanos
e o caso Herzog vs. Brasil

The Inter-American Court of Human Rights
and the case Herzog vs. Brazil

Adolfo Mamoru Nishiyama*
Rafael de Lazari**

Abstract: n March 15th, 2018, a sad piece of the brazilian past was cleared. Finally, Brazil was condemned for its failure to investigate the arbitrary detention, torture and death of journalist Vladimir Herzog in the basements of the dictatorial system (which occurred in 1975). The text that follows seeks to collect specific data from the sentence issued by the Inter-American Court of Human Rights contextualizing it to concomitant historical facts, to, at the end, bring some particular conclusions in favor of the rights to memory and the truth. Technical (mostly) and social (minority) aspects will be seen, using historical and descriptive methods. As research material, doctrinal and jurisprudential analyzes were used.


Keywords: Law of Amnesty, right to memory and truth, American Convention of Human Rights.



Resumo: Em quinze de março de 2018, um triste pedaço do passado brasileiro foi passado a limpo. O Brasil foi, enfim, condenado pela omissão na apuração da detenção arbitrária, tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog nos porões do regime ditatorial (fato ocorrido em 1975). O trabalho que segue busca pinçar dados pontuais da sentença prolatada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos contextualizando-a a fatos históricos concomitantes, para, ao fim, trazer algumas conclusões particula-res favoráveis aos direitos à memória e à verdade. Serão vistos aspectos técnicos (majoritariamente) e sociais (minoritariamente), através dos métodos histórico e descritivo. Como material de pesquisa utilizou-se da doutrina e da jurisprudência.


Palavras-chaveLei da Anistia, direito à memória e à verdade, Convenção Americana de Direitos Humanos.

Sumário: I. Introdução. II. Desenvolvendo o caso. III. Breves considerações técnicas acerca da sentença do caso Herzog vs. Brasil. IV. Considerações finais. V. Referências.

I. Introdução

Em 10 de julho de 2009, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebeu petição inicial apresentada pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL); pela Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FidDH); pelo Centro Santos Dias, da Arquidiocese de São Paulo; e pelo Grupo Tortura Nunca Mais, de São Paulo. O caso foi autuado sob o 12.879. No mérito, discutia-se a suposta responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela inadequada investigação do caso de detenção, tortura e morte do jornalista Vladmir Herzog, ocorridas em 25 de outubro de 1975, durante o período ditatorial.

Boa parte da impunidade dos fatos se deve à Lei de Anistia brasileira (Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979). Pelo art. 1º, caput, dessa lei, foi concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. Pelo parágrafo primeiro, foram considerados conexos os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. Pelo parágrafo segundo, ficaram excetuados dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Voltar-se-á a analisar a Lei da Anistia mais adiante neste trabalho.

Herzog, diretor da TV Cultura, em São Paulo/SP, apareceu morto nas dependências do DOI/Codi —Destacamento de Operações de Informações— Centro de Operações de Defesa Interna da capital paulista. A versão “oficial” dos fatos foi a de que o jornalista cometeu suicídio dentro do estabelecimento, inclusive correndo o mundo fotos suas enforcado com um cinto preso a uma janela e o corpo parcialmente suspenso.

A partir daí, uma árdua batalha foi travada para que ficasse esclarecido o quê aconteceu, de fato, naquele dia 25 de outubro de 1975. O estágio atual da questão é a recente condenação do Estado brasileiro no caso Vladimir Herzog, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Muito embora não se tenha encontrado um culpado (um “rosto”) pela morte do jornalista, o país foi condenado a reabrir as investigações, indenizar os familiares de Herzog e, se possível, encontrar e punir aqueles que, segundo a Corte, praticaram o imprescritível crime contra a humanidade ao ceifar a vida do ex-iugoslavo radicado no Brasil.

Este trabalho tenciona, em um primeiro momento, desenvolver a sentença prolatada pelo órgão do sistema interamericano de proteção de direitos humanos com atribuições jurisdicionais, para, em seguida, tecer singelos comentários de ordem técnica.

II. Desenvolvendo o caso

Nada obstante o peticionamento à Comissão Interamericana tenha se dado em 2009, somente em 2012 tem-se o relatório de admissibilidade (Relatório 80/12) e, em 2015, tem-se o relatório de mérito (Relatório 71/15) —este último consoante o artigo 50 da Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José da Costa Rica”)—. Neste último documento, a Comissão concluiu pela responsabilidade internacional do Estado brasileiro, e recomendou:

a. determinar, por meio da jurisdição de direito comum, a responsabilidade criminal pela detenção arbitrária, a tortura e o assassinato de Vladimir Herzog, mediante uma investigação judicial completa e imparcial dos fatos, em conformidade com o devido processo legal, a fim de identificar e punir penalmente os responsáveis por essas violações, e publicar os resultados dessa investigação. Para o cumprimento dessa recomendação, o Estado deverá considerar que os crimes de lesa humanidade são inanistiáveis e imprescritíveis; b. adotar todas as medidas necessárias para garantir que a Lei nº 6.683/79 (Lei de Anistia) e outras disposições do direito penal, como a prescrição, a coisa julgada e os princípios de irretroatividade e de non bis in idem não continuem representando um obstáculo para a ação penal contra graves violações de direitos humanos; c. oferecer reparação aos familiares de Vladimir Herzog, que inclua o tratamento físico e psicológico e a realização de atos de importância simbólica que garantam a não repetição dos crimes cometidos no presente caso, além do reconhecimento da responsabilidade do Estado pela detenção arbitrária, tortura e assassinato de Vladimir Herzog, e pela dor de sus familiares; e d. reparar adequadamente as violações de direitos humanos no aspecto tanto material como moral (Corte Interamericana de Direitos Humanos [Corte IDH], 2018: 3 e 4).

O relatório de mérito foi comunicado ao Estado brasileiro em 22 de dezembro de 2015, ocasião na qual se lhe concedeu prazo de dois meses para informar sobre o cumprimento das recomendações. Ante a falta de soluções mais concretas, em 22 de abril de 2016 o caso foi apresentado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em seguida, desenvolveu-se regular e devido processo em órgão com atribuições jurisdicionais, destacando aqui: o Brasil contestou e apresentou exceções preliminares (em número de nove); audiência pública realizada em março de 2017 (destaca-se o ingresso, como amigo da Corte, dentre outros, da Comissão Nacional de Direitos Humanos do México, sobre as normas de proteção a jornalistas, com especial ênfase no efeito amedrontador —também chamado “chilling effect”— que pode ter origem em agressões e ataques contra jornalistas); bem como alegações e observações finais escritas.

1. Sobre as exceções preliminares alegadas pelo
Estado brasileiro e seu afastamento

Antes da discussão de mérito propriamente dita, o Estado brasileiro levantou nove exceções: i) a incompetência temporal da Corte Interamericana de Direitos Humanos para a atuação em relação a fatos ocorridos antes do reconhecimento da sua competência contenciosa (lembra-se que, pelo Decreto nº 4.463/2002, o Brasil reconhece como obrigatória e por prazo indeterminado a competência da Corte para fatos posteriores a dez de dezembro de 1998); ii) a incompetência temporal sobre fatos anteriores à adesão à Convenção Americana de Direitos Humanos (lembra-se que os fatos se deram em 1975 e o Brasil somente concluiu o procedimento de internalização do Pacto pelo Decreto nº 678/1992); iii) a incompetência material da Corte quanto a violações de dispositivos da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura; iv) a incompetência temporal sobre fatos anteriores à entrada em vigor da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura para o Estado brasileiro; v) o descumprimento do prazo para a apresentação de petição à Comissão (pelo artigo 46 do Pacto, a petição deve ser apresentada dentro do prazo de seis meses a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva ou, excepcionalmente, em prazo razoável); vi) a falta de esgotamento dos recursos internos para obter uma reparação pecuniária; vii) a inconvencionalidade da publicação do relatório de mérito por parte da Comissão; viii) a incompetência material da Corte para revisar decisões internas; e ix) a incompetência material da Corte para analisar fatos diferentes daqueles submetidos pela Comissão.

Todas as questões preliminares acabaram refutadas. Sobre a suposta incompetência temporal da Corte se destacou:

27. O Brasil ratificou a CIPST e a Convenção Americana em 20 de julho de 1989 e 25 de setembro de 1992, respectivamente. A Corte observa que as obrigações internacionais que decorrem dos citados instrumentos adquiriram plena força legal a partir das referidas datas. Não obstante, o Tribunal observa que não foi senão em 10 de dezembro de 1998 que o Brasil reconheceu a competência contenciosa da Corte Interamericana e a ela se submeteu. Em sua declaração, afirmou que o Tribunal teria competência a respeito de “fatos posteriores” a esse reconhecimento. Com base no exposto e no princípio de irretroatividade, a Corte não pode exercer sua competência contenciosa para aplicar a Convenção e declarar uma violação de suas normas a respeito de fatos alegados ou de condutas do Estado que sejam anteriores a esse reconhecimento de competência. 28. Não obstante, este Tribunal também concluiu que, no transcurso de um processo investigativo ou judicial, podem ocorrer fatos independentes que poderiam configurar violações específicas e autônomas. Por conseguinte, a Corte tem competência para examinar e se pronunciar sobre possíveis violações de direitos humanos a respeito de um processo de investigação ocorrido posteriormente à data de reconhecimento de competência do Tribunal, ainda que esse processo tenha tido início antes do reconhecimento da competência contenciosa. 29. A Corte observa que tanto a Comissão como os representantes afirmaram não pretender que se declare a responsabilidade internacional do Estado por fatos anteriores a 10 de dezembro de 1998. Considerando os critérios expostos, o Tribunal tem competência para analisar os supostos fatos e omissões do Estado, ocorridos a partir de 10 de dezembro de 1998, tanto em relação à Convenção Americana como a respeito dos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, pois se referem à obrigação estatal de investigar, julgar e punir (Corte IDH, 2018: 8 e 9).

Quanto à alegação do Estado brasileiro de falta de esgotamento dos recursos internos, a Corte a desconsiderou argumentando que o Brasil não especificou quais seriam esses recursos internos ainda não esgotados. No que tange à competência da Corte para fatos relacionados à Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, se dispôs:

36. Este Tribunal determinou que pode exercer sua competência contenciosa a respeito de instrumentos interamericanos distintos da Convenção Americana, quando estabeleçam um sistema de petições objeto de supervisão internacional no âmbito regional. Assim, a declaração especial de aceitação da competência contenciosa da Corte, segundo a Convenção Americana, e em conformidade com seu artigo 62, permite que o Tribunal conheça tanto de violações da Convenção como de outros instrumentos interamericanos que a ela outorguem competência. 37. Embora o artigo 8º da Convenção contra a Tortura não mencione explicitamente a Corte Interamericana, este Tribunal já se referiu à sua própria competência para interpretar e aplicar essa Convenção (Corte IDH, 2018: 10).

Quanto à razoabilidade do prazo para apresentação de petição à Comissão, a Corte não adotou como termo inicial a data da morte do jornalista (1975), mas a frustração em relação a expectativas não atendidas quanto a fatos posteriores a isso. Especialmente, se faz menção à promulgação da Lei nº 9.140/1995, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e dá outras providências. Essa lei criou a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), cujo relatório final somente foi emitido em 2007. Este relatório levou à ação manejada pelo Ministério Público Federal, cujo arquivamento somente se deu em janeiro de 2009. Portanto, entre esse arquivamento (janeiro de 2009) e o peticionamento perante a Comissão (julho de 2009), transcorreu prazo razoável, entendeu a Corte.

No que tange à alegação de incompetência material da Corte para rever decisões internas, o aludido órgão com atribuições jurisdicionais frisou que nem a Comissão, nem os representantes, solicitaram a revisão de decisões internas relacionadas à avaliação das provas, dos fatos ou da aplicação do direito interno.

Quanto à alegada inconvencionalidade da publicação do relatório de mérito por parte da Comissão Interamericana, se disse que o Estado brasileiro não justificou a razão deste seu entendimento. Por fim, no que tange à incompetência da Corte para analisar fatos não constantes do relatório de mérito apresentado pela Comissão, se decidiu:

...a Corte recorda que, de acordo com sua jurisprudência constante, o quadro fático do processo perante a Corte é constituído pelos fatos constantes do Relatório de Mérito, com exceção dos fatos que se qualificam como posteriores, sempre que se encontrem ligados aos fatos do processo. Isso sem prejuízo de que os representantes possam expor os fatos que permitam explicar, esclarecer ou desconsiderar os que tenham sido mencionados no Relatório de Mérito e submetidos à consideração da Corte. No presente caso, a Corte observa que a informação remetida pelos representantes tem relação com o alegado acobertamento institucional a que se refere a Comissão em seu Relatório de Mérito. Além disso, a Corte considera que, ainda que a Comissão não tenha estabelecido uma violação do direito à verdade, a ação civil pública está incluída no quadro fático do Relatório de Mérito, de modo que os fatos apresentados pelos representantes relacionados a essa iniciativa judicial são admissíveis e serão considerados no capítulo de mérito (Corte IDH, 2018: 20 e 21).

Pelo exposto, a Corte pôde passar à fase seguinte da apreciação dos fatos, consistente no conjunto fático-probatório (e, obviamente, histórico).

2. Sobre o conjunto histórico e probatório

Na análise do contexto histórico, a Corte Interamericana de Direitos Humanos atentou para o fato de que no dia anterior à privação da liberdade de Vladimir Herzog, onze jornalistas estavam detidos: Sergio Gomes da Silva, Marinilda Marchi, Frederico Pessoa da Silva, Ricardo de Moraes Monteiro, José Pola Galé, Luiz Paulo da Costa, Anthony de Christo, Paulo Sérgio Markun, Diléa Frate, George Duque Estrada e Rodolfo Konder. Ademais, fez menção à “Operação Radar”, uma ofensiva lançada pelo regime então vigente para combater e desmantelar o PCB - Partido Comunista Brasileiro e seus membros (a operação não se limitaria a deter, mas matar os dirigentes do partido).

Especificamente sobre Herzog, a sentença relata que na noite de 24 de outubro de 1975, dois agentes do DOI/Codi se apresentaram na sede da TV Cultura de São Paulo/SP, onde o jornalista estava trabalhando. A ideia era que Herzog os acompanhasse imediatamente a fim de prestar declaração testemunhal, situação contornada pela intervenção da direção do canal e o compromisso de Herzog para apresentar-se voluntariamente no dia seguinte (25 de outubro), o que efetivamente se confirmou. O jornalista Rodolfo Osvaldo Konder, que já se encontrava detido, visualizou Herzog na sala de interrogatório e ouviu seus gritos. Na tarde do dia 25, Herzog foi assassinado por estrangulamento (segundo perícia da Comissão Nacional da Verdade), muito embora o Comando do II Exército tenha divulgado a versão oficial de suicídio por enforcamento com um cinto após Herzog reconhecer, inclusive por escrito, que faria parte do PCB. A reação popular ao assassinato do jornalista fez com que o II Exército desse início a inquérito policial militar destinado a averiguar as circunstâncias do “suicídio” de Vladimir Herzog. Esse inquérito foi arquivado em 12 de fevereiro de 1976 com a ratificação da tese do suicídio por enforcamento (houve, inclusive, laudo de necropsia neste sentido). No atestado de óbito, constou como causa da morte “asfixia mecânica por enforcamento”.1

Já em abril de 1976, familiares do jornalista manejaram ação declaratória à justiça federal de São Paulo para declarar a responsabilidade da União pela detenção arbitrária, tortura e morte de Vladimir Herzog. Em uma das audiências dessa ação, inclusive, o médico responsável por assinar o laudo de necropsia de Herzog declarou que o tinha feito sem nunca ter visto o seu corpo. Assim, em 27 de outubro de 1978, o Juiz Federal Márcio José de Moraes proferiu sentença na qual declarou que Vladimir Herzog havia morrido de causas não naturais quando estava no DOI/Codi. A autoridade judicial salientou que não havia razão para que Herzog tivesse com ele um cinto (que teria sido utilizado para o enforcamento por suicídio, conforme apontou o II Exército), porque sua roupa era inteiriça. Também, se referiu à ilegalidade da detenção de Vladimir Herzog, bem como à prova da tortura que sofreu. Após recursos por parte dos agentes estatais, em 1983 o Tribunal Federal de Recursos declarou a existência de uma relação jurídica entre os atores da ação declaratória e a União, que consistia na obrigação desta última de indenizar pelos danos decorrentes da morte de Herzog, e salientou que esses danos deveriam ser reclamados por meio de uma ação de indenização. A decisão tornou-se definitiva somente em setembro de 1995.

Em dezembro de 1995, foi promulgada a Lei nº 9.140/1995, outrora mencionada, mediante a qual o Estado reconheceu sua responsabilidade, entre outros, pelo assassinato de opositores políticos no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Essa lei também criou a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, bem como determinou a possibilidade de conceder reparação pecuniária aos familiares de mortos e desaparecidos políticos, trazendo um montante mínimo de reparação em R$100.000,00 (cem mil reais). Foi esse o valor recebido por Clarice Herzog pela morte de seu marido.

Em 2007, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos publicou relatório-livro intitulado Direito à memória e à verdade, trazendo, dentre outros, o caso de Vladimir Herzog. Com base neste relatório, o advogado Fábio Konder Comparato solicitou ao Ministério Público Federal que investigasse os abusos e atos criminosos contra opositores políticos do regime militar. O MPF solicitou que membros do Ministério Público com atribuições penais investigassem os crimes contra Vladimir Herzog, mas esse processo foi arquivado em janeiro de 2009 (notadamente, com base na tese da prescritibilidade dos fatos).

Em 2011 foi promulgada a Lei nº 12.528, que criou a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer graves violações de direitos humanos praticadas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.2 Analisando as fotos do caso Herzog, a Comissão concluiu que as marcas em seu pescoço e tórax eram próprias de uma morte por asfixia mecânica e não por suicídio por enforcamento.3 Como parte de suas atribuições, a CNV solicitou a retificação da causa mortis registrada no atestado de óbito de Vladimir Herzog. Em 24 de setembro de 2013, o Juiz interveniente ordenou que no atestado constasse que a morte de Vladimir Herzog ocorrera em consequência de lesões e maus-tratos sofridos no DOI/Codi.

3. Sobre a análise de mérito

Afastadas as preliminares, bem como exaurido o conjunto fático-probatório em regular processo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos passou a apreciar o mérito da questão.

De início, questionou —mais uma vez— a Lei da Anistia brasileira (Lei nº 6.683/1979), tal como já fora feito no caso Gomes Lund vs. Brasil envolvendo a Guerrilha do Araguaia (caso Gomes Lund e outros). Em breve comentário, bem se sabe hoje, a anistia representou mais um passo em prol da inevitável derrocada do regime militar vigente no país desde 1964. Nada obstante a Corte Interamericana tenha adotado a tese da inconstitucionalidade da Lei da Anistia brasileira (por ferir a Convenção Americana de Direitos Humanos), na ADPF nº 153/DF (Rel.: Min. Eros Grau. DJ. 29/04/2010) o Supremo Tribunal Federal foi chamado a se manifestar, por iniciativa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, acerca da recepção ou não do art. 1º, §1º, da Lei nº 6.683/1979, dispositivo que considerou conexos, para efeitos de anistia, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. O STF declarou essa tese recepcionada pela Constituição Federal de 1988, havendo atualmente, assim, decisões contraditórias entre o guardião da Constituição Federal e o órgão de atribuições jurisdicionais do sistema americano de proteção dos direitos humanos.

Prosseguindo, em seguida a Corte classificou como crimes contra a humanidade os atos praticados contra o jornalista Vladimir Herzog, lembrou que a proibição de crimes dessa natureza é norma imperativa de direito internacional (jus cogens)4 e que tais atos são imprescritíveis. Assim:

312. Com base nas considerações acima, a Corte Interamericana conclui que, em razão da falta de investigação, bem como de julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e pelo assassinato de Vladimir Herzog, cometidos num contexto sistemático e generalizado de ataques à população civil, o Brasil violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento, e em relação aos artigos 1, 6 e 8 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em detrimento de Zora, Clarice, André e Ivo Herzog. A Corte conclui também que o Brasil descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção, constante do artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo tratado, e aos artigos 1, 6 e 8 da CIPST, em virtude da aplicação da Lei de Anistia nº 6683/79 e de outras excludentes de responsabilidade proibidas pelo direito internacional em casos de crimes contra a humanidade, de acordo com os parágrafos 208 a 310 da presente Sentença (Corte IDH, 2018: 82).

Ato contínuo, a Corte tratou do direito de conhecer a verdade, uma vez que o Estado brasileiro: publicou uma versão falsa da morte de Herzog (vide a tese do suicídio, encampada até mesmo por laudo necroscópico forjado), sistematicamente negou acesso aos documentos militares, bem como permitiu a impunidade como obstáculo para conhecer a verdade (por conta da anistia dos fatos praticados no período).

Como última questão de mérito, a Corte considerou os familiares de Herzog igualmente vítimas. Considerou-se violado o direito à integridade psíquica e moral dos familiares da vítima, por motivo do sofrimento adicional por que passaram como resultado das circunstâncias particulares das violações cometidas contra Herzog, e em virtude das posteriores ações ou omissões das autoridades estatais frente aos fatos.

Após a análise meritória, foram discutidas as medidas de reparação, notadamente que seja feita uma investigação adequada para esclarecer o quê exatamente aconteceu em 25 de outubro de 1975 (reinício das investigações, na verdade), a fim de identificar, processar e, se for o caso, punir os responsáveis pela detenção arbitrária, tortura e morte de Vladimir Herzog (a possibilidade de punição partiu da tese da imprescritibilidade do crime contra a humanidade praticado contra o jornalista). No mais, determinou-se a concessão de $40.000,00 (quarenta mil dólares americanos), a título de dano imaterial, para cada um dos familiares de Herzog (Clarice, André, Ivo e Zora Herzog —como Zora faleceu em 2006, o montante que lhe cabe deverá ser pago diretamente a seus sucessores—). Foi negada a indenização pedida em quase cinco milhões de dólares a título de lucro cessante (considerando o salário médio de Herzog atualizado, bem como a expectativa de vida média do brasileiro atualmente), tendo em vista que Herzog não foi considerado propriamente vítima neste processo, mas tão somente seus familiares.

Todas as decisões foram tomadas por unanimidade.

III. Breves considerações técnicas acerca da sentença
do caso Herzog vs. Brasil

Ao trazer um memorial descritivo da repulsiva morte de Vladimir Herzog nos porões da ditadura quer-se, mais que despertar um senso de inconformismo no leitor, dar continuidade à narrativa acerca do que efetivamente aconteceu: disseram que Herzog tinha cometido suicídio dentro da cadeia, mas viu-se que ele foi, na verdade, morto; disseram que um laudo necroscópico atestava a morte auto infligida, mas viu-se que o perito que o assinou jamais viu o corpo de Herzog; disseram que o Estado tinha possibilitado todos os recursos possíveis às vítimas-familiares, mas viu-se bem o que foram esses quase quarenta anos de luta por uma reparação quanto aos brutais fatos ocorridos em outubro de 1975 (e, neste ponto, a sentença funciona como um respeitável álbum de recordações, deixando claro que muitos foram os que tentaram contar o quê, realmente, aconteceu). Por este prisma, este trabalho tem o humilde intento de propagar na comunidade acadêmica um exemplo exitoso de constante busca pela verdade, sem perder de vista os recursos técnicos exigidos para tanto. No caso Herzog vs. Brasil, a verdade venceu a mentira.

Analisando pelos tecnicismos puros e simples, têm-se alguns questionamentos quanto aos termos da sentença, entretanto. Em primeiro lugar, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem defendido a inconvencionalidade da Lei de Anistia brasileira (de todas as leis de auto anistia, aliás), direcionando a questão para uma revisão unilateral do aludido diploma. Mais que o caráter unilateral ou bilateral incondicionado da Lei da Anistia brasileira, entende-se que a solução mais justa seria a do condicionamento do perdão à elucidação dos fatos. Ao optar por passar uma “borracha histórica” no passado ditatorial pátrio, sem questionamentos ou perguntas a quem praticou atrocidades para manter e para derrubar o regime então vigente (e elas existiram dos dois lados, não se pode mais negar), perdeu-se oportunidade singular de documentar, punir, indenizar e revisar versões oficiais.5 Prova maior desse ressentimento histórico são os relatórios finais da Comissão Nacional da Verdade, que foram simplesmente criticados sem maiores aprofundamentos simplesmente por conta de uma suposta parcialidade de quem os elaborou. Tivesse a anistia sido condicionada a reparações e à verdade (num exemplo parecido do que foi praticado na África do Sul com a chegada de Nelson Mandela ao poder), possivelmente a solução fosse mais satisfatória.6 Questiona-se a Corte, neste aspecto, pela visão “simplista” que tenta imprimir (da mesma maneira que se questiona o “simplismo” da Lei nº 6.683, vale frisar).

Em segundo lugar, parece forçoso ter a Corte definido como “crime contra a humanidade” os atos praticados contra Vladimir Herzog, por mais brutais e repulsivos que tenham sido. Por definição técnica (e aqui toma-se o melhor conceito que atualmente se tem, que é o do art. 7º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional), entende-se por crime contra a humanidade qualquer um dos atos seguintes (e neles realmente se menciona o homicídio, a prisão indevida e a tortura), desde que cometidos em um quadro de ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque.7 Repara-se, portanto, que o crime contra a humanidade exige generalização e sistematicidade para sua configuração, e não foi esse o caminho percorrido pela Corte Interamericana para definição da brutal morte de Herzog. No começo da sentença, os juízes parecem acertar o caminho: havia uma operação montada para desmantelar a estrutura e matar os dirigentes do Partido Comunista Brasileiro, o que em tese caracterizaria generalizado e sistemático quadro de perseguição. Entretanto, depois, a sentença não esclarece se Herzog realmente fazia ou não parte do PCB (faz-se, apenas, menção a uma declaração do jornalista reconhecendo isso, a qual também se entendeu forjada —assim como o laudo necroscópico—), deixando a morte de Herzog isolada em um universo de possibilidades diabólicas praticadas pela ditadura. Em outros termos, para que a morte de Herzog fosse, de fato, um crime contra a humanidade, seria necessário ou que fosse incluída em um quadro de matança generalizada de membros do PCB (e assim reconhecida na sentença, com nomes e provas após regular processo), ou que a ditadura brasileira como um todo fosse considerada um crime contra a humanidade. Nenhuma das duas situações aconteceu.8

Talvez, o grande objetivo de considerar a morte de Herzog um crime contra a humanidade tenha sido assegurar a imprescritibilidade dos fatos, notadamente para a punição dos eventuais culpados (ou seja, mais que configurar o crime, o que se parece buscar realmente é sua consequência). Fosse a sentença prolatada pela Corte meramente declaratória (e não condenatória, como foi), reconhecendo a responsabilidade internacional do Estado brasileiro sem, contudo, constituir relações jurídicas (como as que foram constituídas entre o Estado brasileiro e os familiares de Herzog), essa questão da imprescritibilidade não seria um problema, pois tudo o que se buscaria seria uma declaração oficial da verdade. Como se quis mais que uma declaração, a saída foi considerar a detenção indevida, tortura e morte um crime contra a humanidade. Se o que esem jogo aqui é o vetor “justiça”, então o artifício foi perfeitamente válido; se o que esem jogo aqui é o vetor “segurança jurídica”, então o artifício foi indevido. Ao leitor cabe escolher seu lado (se quiser).

Em terceiro lugar, a Corte utiliza mecanismo de “ganchos históricos” para atuar em fatos anteriores ao reconhecimento da incidência de sua competência pelo Brasil. Como dito outrora, o Brasil reconhece a competência originária da Corte Interamericana de Direitos Humanos para fatos posteriores a dez de dezembro de 1998 (Decreto nº 4.463/2002), o que cria interpretação dúbia: um literalista dirá que a violação de direitos humanos deve ser inteiramente posterior a dez de dezembro de 1998 para que o Brasil possa ser julgado; um finalista dirá que isso inclui fatos que se arrastam anteriormente a esta data, mas que nesta data ainda não estejam resolvidos. A Corte tem utilizado esta segunda interpretação, analisando seu padrão de condenações (inclusive brasileiras). Ela diz respeitar a competência temporal da adesão do Estado brasileiro, mas verticaliza o máximo possível até chegar à origem do problema.

Observando o caso em estudo, a Corte faz exatamente isso: a condenação é um pacote que engloba fatos anteriores e posteriores a dez de dezembro de 1998 (prova disso, a Corte demonstra excessivo incômodo com a forja de suicídio pelo Estado brasileiro, o que contraria o direito à verdade, sendo que esse fato —a afirmação mentirosa do II Exército e o laudo necroscópico de suicídio dúbio— se deu ainda na década de 1970, quando o Brasil não tinha aderido temporalmente à Corte Interamericana de Direitos Humanos). Como esse tem sido um padrão da Corte em casos envolvendo ou não o Estado brasileiro sem que haja rechaço da comunidade interamericana quanto a isso, entende-se que o silêncio traz consentimento: somente um novo Decreto do Estado brasileiro pode modificar isso (artigo 62 da Convenção Americana), o que parece altamente não recomendável para o atual estágio democrático em que o país se encontra.

Em quarto lugar, a Corte age bem em considerar os familiares de Herzog vítimas, bem como em determinar a reabertura das investigações. Essa ampliação do conceito de vítima humaniza —um pouco— o tratamento burocrático dado ao pós-crime (quando tudo vira, no fim das contas, papel). A brutal morte de Herzog nos porões da ditadura, em contexto nunca antes esclarecido, ainda mais com uma falsa acusação de suicídio (o que é imperdoável para determinadas religiões, como o cristianismo, o espiritismo e o judaísmo —esta última, religião de Herzog e sua família—), provocou irreparável dano aos que ficaram para lutar por sua memória e para conviver com a dor da perda de um ente querido. É difícil se colocar no lugar dos familiares de Herzog, mas a incansável luta pela verdade (um inquérito policial militar, uma ação declaratória, uma ação civil pública, um reconhecimento de responsabilidade estatal em 1995 e uma reanálise de fatos pela Comissão Nacional da Verdade) mostra uma paz difícil de ser alcançada durante todo este período. Para Zora Herzog, mãe do jornalista e morta em 2006, a sentença da Corte certamente veio tarde demais.

Neste sentido, a reabertura das investigações funciona como um norte, um modus operandi, que, espera-se, seja replicado a fim de documentar mais esmiuçadamente o que aconteceu no período ditatorial brasileiro. Para se ter ideia do quão longe ainda se esdo fim da apuração deste “período 1964-1985”, menção se faz à “Vala de Perus” (Cemitério de Perus), localizada na zona norte da cidade de São Paulo/SP, conhecida por ter sido utilizada para o sepultamento de pessoas mortas pela ditadura. Em 1990, uma vala clandestina comum foi descoberta com mais de mil ossadas, as quais pertencem a indigentes, assassinados em contexto de violência geral e desaparecidos políticos. Dessas mil ossadas, apenas cinco foram identificadas quase trinta anos depois, devido às dificuldades dos exames de identificação (que precisam ser feitos em um laboratório na Bósnia). Esse singelo exemplo deixa claro o quão longe se esde uma história definitiva, de modo que a sentença da Corte foi apenas mais um passo nessa longa caminhada.

IV. Considerações finais

A finalidade maior do presente trabalho foi trazer ao leitor um contexto geral da recente condenação internacional do Estado brasileiro por violação a direitos humanos. Acredita-se que uma boa maneira de perpetuar histórias é não deixá-las cair no esquecimento, bem como cuidar para que o tempo ou as pessoas não as distorçam.

Nos tópicos que se seguiram, objetivou-se fazer uma análise da sentença prolatada contra o Estado brasileiro —no caso Vladimir Herzog— pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, notadamente seus aspectos jurídicos e históricos. Assim, discorreu-se sobre as preliminares alegadas pelo Estado brasileiro (e suas refutações), o conjunto fático-probatório e histórico que envolve a detenção arbitrária, tortura e morte de Herzog, bem como análise de mérito. Ao fim, singelas considerações técnicas foram feitas.

Se a sentença da Corte Interamericana é um ponto final na longa marcha processual que começou com o peticionamento à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2009, bem como promove revisão histórica de processos anteriores inefetivos ou parcialmente efetivos (vide um inquérito policial militar totalmente “viciado”, por exemplo), deve, por outro lado, ser um ponto de partida para que o país se reconcilie com seu passado. Na história que se espera para o Brasil, revanchismos e ressentimentos não devem ter lugar.

V. Referências

Buff, Maria Luci (2007). Horizontes do perdão: reflexões a partir de Paul Ricoeur e Jacques Derrida. São Paulo: Pontificia Universidade Católica de São Paulo.

Comissão Nacional da Verdade (2014). Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV.

Corte Interamericana de Direitos Humanos (2018). Caso Herzog e outros vs. Brasil. Sentença de 15 de março de 2018 (exceções preliminares, mérito, reparações e custas). Recuperado em 15 janeiro, 2019, de http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_353_por.pdf.

Corte Interamericana de Direitos Humanos (2010). Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010 (exceções preliminares, mérito, reparações e custas). Recuperado em 15 janeiro, 2019, de http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf.

Lazari, R. e Oliveira, B. P. G. (2018). Manual de direitos humanos. 4a. ed. Salvador: JusPODIVM.

Markun, Paulo (1988). Vlado: Retrato da morte de um homem e de uma época. São Paulo: Círculo do Livro.

Piovesan, Flavia (2006). Direitos humanos e justiça internacional. 7a. ed. São Paulo: Saraiva.

Toron, Alberto Z. (2018). “A condenação do Brasil e as dificuldades do caso Vladimir Herzog”. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jul-13/toron-condenacao-brasil-dificuldades-herzog (data da consulta: 16 de janeiro de 2019).


1 Relata-se, inclusive, certa pressa para que o corpo de Herzog não fosse visto sequer por seus familiares e que fosse enterrado rapidamente: “Somente às 16h30 de domingo o corpo de Vlado, vindo do IML, chegou ao Hospital Albert Einstein, onde foi velado. No IML, foi impossível a qualquer pessoa da família, inclusive à esposa, ver o corpo. «Ordens superiores», era a resposta. Funcionários do IML também queriam o sepultamento imediato. Clarice exigiu o cumprimento do ritual judaico, que acabou ficando a cargo do Khevra Kadicha («Santa Irmandade»), uma instituição humanitária da comunidade judaica encarregada de cerimônias fúnebres... A pressa em terminar a cerimônia foi tal que, apesar dos gritos de protestos de Clarice e de diversos outros presentes, não se esperou pela chegada da mãe de Vlado, dona Zora, para o início do sepultamento, como manda a tradição judaica” (Markun, 1988: 21).

2 Ainda: “A CNV merece ser estudada como mecanismo de proteção, notadamente como instrumento da justiça de transição, vez que... fez um grande trabalho de promoção dos direitos humanos (inclusive, não deixando de fazer menção a documentos protetores, como a Convenção Americana), em sintonia com o PNDH-3 (terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos” (Lazari e Oliveira, 2018: 627).

3 “A evidência de duas marcas distintas na região cervical foi determinante para os peritos criminais afirmarem que: Vladimir Herzog foi inicialmente estrangulado, provavelmente com a cinta citada pelo perito criminal, e, em ato contínuo, foi montado um sistema de forca, onde uma das extremidades foi fixada a grade metálica de proteção da janela e, a outra, envolvida ao redor do pescoço de Vladimir Herzog, por meio de uma laçada móvel. Após, o corpo foi colocado em suspensão incompleta de forma a simular um enforcamento” (Corte IDH, 2018: 36).

4 Os crimes contra a humanidade são um dos delitos reconhecidos pelo direito internacional, juntamente com os crimes de guerra, o genocídio, a escravidão e o crime de agressão. Isso significa que seu conteúdo, sua natureza e as condições de sua responsabilidade são estabelecidos pelo direito internacional, independentemente do que se possa estabelecer no direito interno dos Estados. A característica fundamental de um delito de direito internacional é que ameaça à paz e a segurança da humanidade porque choca a consciência da humanidade. Tratamse de crimes de Estado planejados e que fazem parte de uma estratégia ou política manifesta contra uma população ou grupo de pessoas. Aqueles que os cometem, tipicamente, devem ser agentes estatais encarregados do cumprimento dessa política ou plano, que participam de atos de assassinato, tortura, estupro e outros atos repudiáveis contra civis, de maneira sistemática ou generalizada” (Corte IDH, 2018: 49).

5 “Finalmente, em agosto de 1979, o Congresso Nacional aprovou a Lei de Anistia. Sancionada por Figueiredo cinco dias depois, ela excluía os «condenados por crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal», porém, incluía os acusados de tortura, assassinato e desaparecimento durante o regime militar. Era ampla e geral, mas não irrestrita. Perdoava a todos que cometeram ‘crimes políticos ou com eles conexos’ no período de 1961 a 1979. Assim, lideranças políticas, intelectuais, artistas e militantes de esquerda puderam retornar ao Brasil. Hoje, entretanto, pouco mais de um quarto de século depois, esse mesmo processo democrático deflagrado pela Lei da Anistia ainda é, para muitos, uma obra inacabada ou parcial. Isso porque os dois maiores traumas históricos do período ainda não foram resolvidos: a punição dos torturadores e o esclarecimento do paradeiro daqueles considerados «desaparecidos» pelo regime” (Buff, 2007: 282 e 283).

6 Convém mencionar, aqui, a Comissão Verdade e Reconciliação (CVR), da África do Sul, instituída em 1995 pelo então presidente Nelson Mandela: “A CVR trabalhou com quatro conceitos de verdade: a verdade factual ou forense (do tribunal no qual se apoia a anistia); a verdade pessoal e narrativa ou das audiências e relatos; a verdade social ou a verdade do diálogo, ligada ao processo de partilha entre ofensores (chamados de perpetrators) e vítimas; e a verdade que cura (healing) ou da justiça restaurativa constitutiva da nova unidade africana... A questão da anistia foi o ponto mais longamente debatido nas negociações, e a passagem da Lei no Parlamento foi mais demorada que qualquer outra. Durante a anistia, opuseram-se os movimentos de liberação, que fizeram pressão em favor das persecuções criminais num processo do tipo Nuremberg e, de outra parte, o regime precedente, que esperava uma anistia geral, sem reexame do passado. A versão sul-africana de uma anistia condicionada apresentou a vantagem de pedir narrativas detalhadas aos criminosos e às instituições” (Buff, 2007: 225, 228 e 229).

7 Também Piovesan (2006: 48).

8 Como argumento complementar, Alberto Zacharias Toron, em interessante trabalho publicado em julho de 2018 pelo site Consultor Jurídico, frisa: “A tipificação da tortura como crime, sob esse nomen iuris, só veio a ocorrer na legislação ordinária brasileira com a edição da Lei 9.455/97, a qual, além de estabelecer as hipóteses do crime em foco, na linha da Constituição, fixou sua inafiançabilidade e a impossibilidade da concessão de anistia ou graça aos seus infratores, mas não a imprescritibilidade (cfr. artigo 1º, parágrafo 6º). Afora isso, mesmo se considerando a tortura como crime contra a humanidade e, segundo os tratados internacionais, imprescritível, é bem de ver que o Brasil é não é signatário da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade e, por outro lado, só o foi da Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992, sendo, portanto, inaplicável retroativamente, no Direito interno, regras de Direito Penal, como a prescrição, mais gravosas” (Toron, ٢٠١٨: s/n). Toron, aliás, foi perito do Estado brasileiro no caso Herzog.

* Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre e doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor de Direito Constitucional e Direito Processual Civil da Universidade Paulista, Brasil, desde 1999. Relator da XX Turma do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP - Brasil (2010-2012). Advogado. Autor de diversas obras jurídicas. ORCID: 0000-0002-7354-8267; amnadv@uol.com.br.

**Advogado, consultor jurídico e parecerista. Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal. Estágio Pós-Doutoral pelo Centro Universitário “Eurípides Soares da Rocha”, de Marília/SP, Brasil. Professor da Graduação, do Mestrado e do Doutorado em Direito da Universidade de Marília/SP, Brasil. ORCID: 0000-0002-9808-8631; prof.rafaeldelazari@hotmail.com.